As fibras alimentares são mais do que reguladoras do intestino: elas modulam a microbiota, produzem compostos bioativos e estão ligadas à saúde metabólica, cardiovascular, imunológica e até neurológica. Estudos recentes reforçam que o consumo adequado de fibras reduz riscos de obesidade, diabetes, doenças cardíacas, câncer de cólon e inflamações crônicas. No entanto, a ingestão populacional ainda está bem abaixo do recomendado, destacando a importância de aumentar a presença de frutas, verduras, leguminosas e cereais integrais no dia a dia.

 

As fibras alimentares desempenham um papel essencial no controle do peso e na saúde intestinal. Assim como os medicamentos emagrecedores à base de GLP-1, elas estimulam a produção desse hormônio de forma natural, favorecendo saciedade, equilíbrio glicêmico e metabolismo energético. Quando associadas a uma dieta equilibrada, as fibras podem potencializar os efeitos dos análogos de GLP-1, oferecendo um suporte acessível e sustentável para o emagrecimento saudável e a prevenção de doenças crônicas.

 

“Dietary fiber and the microbiota: A narrative review by a group of experts from the Asociación Mexicana de Gastroenterología”
Revista de Gastroenterología de México, 2021 — Abreu y Abreu, A. T. et al.

 Prévia do Estudo

A relação entre fibra dietética e microbiota intestinal vem ganhando destaque na ciência da nutrição e da gastroenterologia, pois a fermentação das fibras pelas bactérias intestinais produz compostos bioativos fundamentais, como os ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), que exercem efeitos locais e sistêmicos. Diante da diversidade de tipos de fibras, seus diferentes mecanismos de ação e impacto na saúde, a Associação Mexicana de Gastroenterologia reuniu um grupo multidisciplinar de especialistas para elaborar uma revisão narrativa que servisse como documento de referência técnico e científico, abordando de forma clara os efeitos diretos e indiretos do consumo de fibras sobre a microbiota e sobre a saúde humana.

Introdução

A microbiota intestinal é reconhecida como reguladora crucial da saúde. Alterações em sua composição podem influenciar desde a digestão até a modulação imunológica e prevenção de doenças. Entre as estratégias de modulação da microbiota, destacam-se os probióticos, prebióticos, transplante fecal e, sobretudo, a ingestão de fibras dietéticas, considerada prática simples, eficaz e de baixo custo.

As fibras atuam como substrato para bactérias intestinais, que as degradam produzindo AGCC (acetato, propionato e butirato), moléculas que desempenham papéis importantes no metabolismo energético, na imunorregulação e na proteção da mucosa intestinal.

Métodos

·         A revisão foi elaborada em 2020 por 17 especialistas (nutricionistas clínicos, químicos, gastroenterologistas e pediatras).

·         Baseou-se em análise crítica da literatura científica disponível sobre fibras, microbiota e seus impactos fisiológicos e clínicos.

·         O objetivo central foi sistematizar o conhecimento para servir de guia de referência na prática clínica.

Resultados Principais

1.    Classificação das fibras

·         Por origem: alimentares (intrínsecas) ou funcionais (extraídas/sintéticas).

·         Por propriedades físico-químicas: solúveis/insolúveis, viscosas/não viscosas, fermentáveis/não fermentáveis.

·         Exemplos: celulose, hemicelulose, pectina, inulina, amido resistente, gomas, lignina.

2.    Impactos diretos na microbiota

·         Diferentes fibras modulam diferentes grupos bacterianos.

·         Fibras solúveis (ex.: pectina, inulina): aumentam lactobacilos, bifidobactérias e a produção de butirato.

·         Fibras insolúveis: estimulam bactérias como Prevotella e Ruminococcaceae, acelerando o trânsito intestinal.

·         A fermentação produz AGCC, que:

1)    Regulam expressão gênica,

2)    Atuam em receptores ligados a ácidos graxos (GPCRs),

3)    Favorecem a imunorregulação e o metabolismo da glicose/lipídios.

3.    Efeitos indiretos na saúde

·         Cardiometabólica: redução de glicemia pós-prandial, melhora do perfil lipídico, redução do risco de obesidade e doenças cardiovasculares.

·         Digestiva: melhoria do trânsito intestinal, prevenção de constipação, manutenção da integridade da barreira intestinal.

·         Transtornos funcionais gastrointestinais: melhora em síndrome do intestino irritável e colite ulcerativa.

·         Eixo intestino-cérebro: AGCC, especialmente o butirato, estão ligados a efeitos neuroprotetores (memória, humor, doenças neurodegenerativas).

4.    Fibra, microbiota e obesidade

·         Dietas ricas em fibras reduzem ingestão calórica, peso corporal e gordura visceral.

·         Estudo de meta-análise: cada 14 g adicionais de fibra/dia associaram-se a 10% menos ingestão energética e perda de até 2 kg em 4 meses.

5.    Deficiência no consumo

·         Pesquisas (ENSANUT, México) mostram ingestão insuficiente de fibras desde a infância até a vida adulta.

·         OMS recomenda 14 g de fibra a cada 1000 kcal, mas valores populacionais ficam bem abaixo.

Discussão

A revisão evidencia que:

·         O tipo de fibra, suas propriedades físico-químicas e a composição individual da microbiota determinam a resposta fisiológica.

·         Não todas as fibras são prebióticas, mas várias exercem efeitos benéficos sobre a microbiota e a saúde.

·         Estratégias de saúde pública devem estimular maior consumo de frutas, verduras, leguminosas e cereais integrais, além do uso de suplementos de fibras quando necessário.

Conclusão

A fibra dietética é um dos moduladores mais eficazes da microbiota intestinal, promovendo benefícios diretos e indiretos para a saúde metabólica, gastrointestinal, imunológica e até neurológica. Apesar da evidência científica robusta, o consumo populacional continua aquém do recomendado, tornando essencial promover políticas e recomendações nutricionais que priorizem o aumento da ingestão de fibras para a prevenção e manejo de doenças crônicas.

Referência:

Abreu y Abreu AT, Milke-García MP, Argüello-Arévalo GA, Calderón-de la Barca AM, Carmona-Sánchez RI,Consuelo-Sánchez A, et al., Fibra dietaria y microbiota, revisión narrativa de un grupo de expertos de la Asociación Mexicana de Gastroen-terología, Rev Gastroenterol México. 2021; 86:287-304. DOI: 10.1016/j.rgmxen.2021.02.002

 

 

Prévia do artigo

“Dietary fiber influence on overall health, with an emphasis on CVD, diabetes, obesity, colon cancer, and inflammation”
Autores: Shirley Martin, Salima Merchant, Abiodun Oluyomi Daniel
Frontiers in Nutrition, 2024

Prévia do Estudo

O artigo apresenta uma revisão narrativa sobre os efeitos das fibras alimentares na saúde humana. O texto reúne evidências científicas recentes, incluindo estudos clínicos, coortes e meta-análises, explorando como diferentes tipos de fibras — solúveis e insolúveis — atuam na prevenção e no manejo de doenças cardiovasculares (CVD), diabetes tipo 2, obesidade, câncer de cólon e processos inflamatórios. Além disso, o artigo discute os mecanismos fisiológicos subjacentes, as recomendações de ingestão e os desafios para a consolidação de políticas nutricionais eficazes.

Introdução

As fibras alimentares são definidas como carboidratos não digeríveis presentes em alimentos vegetais, com diferentes propriedades químicas e fisiológicas. Podem ser classificadas em:

·         Solúveis: como pectina, inulina e gomas, que formam soluções viscosas e são fermentadas no cólon.

·         Insolúveis: como celulose e lignina, que aumentam o bolo fecal e aceleram o trânsito intestinal.

Evidências apontam que dietas ricas em fibras estão associadas a menor risco de mortalidade geral e redução da incidência de doenças crônicas não transmissíveis. Entretanto, a ingestão global de fibras ainda está bem abaixo das recomendações da OMS (25 g/dia para mulheres e 38 g/dia para homens).

Métodos

Este é um estudo de revisão narrativa realizado a partir da análise de artigos científicos disponíveis em bases de dados internacionais. Foram considerados:

·         Ensaios clínicos randomizados,

·         Estudos de coorte,

·         Revisões sistemáticas e meta-análises.

A revisão organizou os achados segundo cinco principais áreas de impacto:

1)    Doenças cardiovasculares (CVD),

2)    Diabetes tipo 2,

3)    Obesidade,

4)    Câncer de cólon,

5)    Inflamação.

Resultados

1.    Doenças cardiovasculares (CVD)

·         Fibras solúveis reduzem colesterol total e LDL, aumentando a excreção de ácidos biliares.

·         Estudos de coorte mostram associação entre alto consumo de fibras e menor mortalidade cardiovascular (RR entre 0,72 e 0,93).

·         Grãos integrais, frutas e vegetais ricos em fibras foram os maiores protetores.

2.    Diabetes tipo 2

·         Fibras solúveis melhoram a sensibilidade à insulina, reduzem glicemia de jejum e HbA1c.

·         A fermentação no cólon produz ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), que regulam hormônios intestinais (GLP-1, leptina) e o metabolismo energético.

·         Dietas com grãos integrais reduzem o risco de desenvolver diabetes.

3.    Obesidade

·         Fibras aumentam a saciedade, prolongam o esvaziamento gástrico e reduzem ingestão calórica.

·         Dietas ricas em fibras estão associadas à redução de gordura corporal e melhora da composição corporal.

·         A microbiota intestinal modulada pelas fibras participa do controle do peso e da inflamação associada à obesidade.

4.    Câncer de cólon

·         As fibras reduzem o risco por três mecanismos principais:

1)    Diluição de carcinógenos no intestino,

2)    Redução do tempo de trânsito intestinal,

3)    Produção de AGCC como o butirato, com efeito antitumoral.

·         Evidências mais consistentes para grãos integrais e frutas.

5.    Inflamação

·         Fibras dietéticas reduzem marcadores inflamatórios como proteína C-reativa (PCR).

·         Prebióticos (inulina, frutooligossacarídeos) modulam a microbiota, melhorando a imunidade.

·         Há relação entre consumo de fibras e redução de sintomas de doenças inflamatórias intestinais e até de distúrbios metabólicos relacionados à inflamação crônica.

Discussão

·         A ingestão adequada de fibras exerce múltiplos efeitos fisiológicos: melhora lipídica, controle glicêmico, modulação da microbiota, efeito anti-inflamatório e proteção contra câncer.

·         Apesar das evidências robustas, o consumo populacional ainda está aquém das recomendações globais.

·         Limitações incluem heterogeneidade nos estudos, autorrelato de ingestão alimentar e dificuldade em distinguir os efeitos de tipos específicos de fibras.

·         O artigo sugere que o enriquecimento da dieta com fibras vegetais e integrais deve ser prioridade em políticas públicas de saúde.

Conclusão

O consumo adequado de fibras é um fator determinante para a saúde metabólica, cardiovascular e intestinal. Evidências científicas apontam benefícios claros na prevenção e no manejo de doenças crônicas como diabetes, obesidade, câncer de cólon e doenças cardiovasculares.
Recomenda-se:

·         Aumentar a ingestão diária por meio de frutas, vegetais, cereais integrais e leguminosas;

·         Valorizar o papel da microbiota intestinal na mediação desses efeitos;

·         Investir em estratégias de saúde pública para estimular hábitos alimentares mais ricos em fibras.

Assim, a fibra alimentar se consolida como um nutriente-chave na promoção da saúde e na prevenção de doenças crônicas não transmissíveis.

Referência:

ALAHMARI, L. A. Dietary fiber influence on overall health, with an emphasis on CVD, diabetes, obesity, colon cancer, and inflammation. Frontiers in Nutrition, v. 11, 13 dez. 2024.

 

 

Prévia do Artigo

“Dietary Fiber Intake and Gut Microbiota in Human Health — revisão publicada” na revista Microorganisms (2022).
Autores: Jiongxing Fu, Yan Zheng, Ying Gao e Wanghong Xu.


Objetivo: revisar evidências sobre como diferentes tipos e níveis de ingestão de fibra dietética modulam a microbiota intestinal humana, os mecanismos (principalmente via ácidos graxos de cadeia curta — SCFAs) e os efeitos metabólicos, com ênfase em pontos de corte tipo-específicos de fibra para respostas microbianas e implicações para diabetes e outras doenças metabólicas.

1. Contexto e objetivo (Introdução)

Os autores explicam que a fibra dietética — presente em cereais integrais, frutas, verduras e leguminosas — foi consumida em quantidades muito maiores ao longo da evolução humana, mas diminuiu muito com a industrialização. Essa redução está correlacionada com alterações microbianas intestinais que contribuem para epidemias modernas de obesidade, diabetes tipo 2 e outras doenças crônicas. A revisão sintetiza evidências sobre tipos de fibra, fermentação microbiana, metabólitos (SCFAs) e impactos na saúde humana, buscando também identificar cutoffs (níveis mínimos/dosagens) tipo-específicos em que a fibra altera a microbiota.

2. Tipos de fibra e fermentabilidade

A fermentabilidade depende de características físico-químicas: grau de polimerização, solubilidade, viscosidade e tamanho de partícula. Fibras com baixa DP (grau de polimerização) e partículas pequenas são rapidamente fermentadas; fibras solúveis e viscosas tendem a fermentar mais lentamente. A fermentação gera gases, lactato, succinato e, principalmente, SCFAs (acetato, propionato, butirato), que atuam como sinais metabólicos em órgãos distantes via receptores FFAR/GPR e têm efeitos benéficos sobre homeostase metabólica, barreira intestinal e imunidade.

3. Impacto geral sobre estrutura e diversidade microbiana

·         Beta-diversity: Consistentemente, dietas ricas em fibra (dietas rurais, mediterrâneas, vegetarianas) resultam em perfis microbianos muito diferentes dos de dietas ocidentais; ou seja, a composição geral muda com mais fibra.

·         Alpha-diversity (riqueza/mesmidade): achados inconsistentes. Em algumas populações/de estudos a fibra aumenta a diversidade; em outros estudos clínicos a alpha-diversity permaneceu estável ou até diminuiu temporariamente — possivelmente porque a fibra enriquece produtores específicos de SCFA, reduzindo medidas globais de diversidade enquanto melhora função metabólica.

4. Efeitos por grupos microbianos (taxa-específicos)

Os autores detalham fibras e os microrganismos que elas mais promovem:

·         Bifidobacterium: efeito bifidogênico consistente com inulina, FOS, GOS, RS, AXOS e outras; aumento detectável em 1–2 semanas em muitos estudos. É a resposta mais robusta e repetida entre ensaios.

·         Faecalibacterium / Roseburia / outros produtores de butirato: promovidos por tipos específicos (por exemplo, certos amidos resistentes e arabinoxilanos), importantes por fornecerem butirato, substrato energético para colonócitos e modulador anti-inflamatório.

·         Ruminococcus: particularmente estimulado por amidos resistentes (RS).

·         microorganisms-10-02507-v2

·         Lactobacillus: aumentado por fibras que contêm unidades de galactose/frutose (ex.: GOS, alguns inulinos).

·         Prevotella: característica de populações não industrializadas com dieta rica em carboidratos vegetais; porém, intervenções de curto prazo raramente induzem Prevotella — é mais dependente da dieta habitual de longo prazo e de padrões alimentares locais.

5. SCFAs: mecanismo e efeitos metabólicos

SCFAs (acetato, propionato, butirato) têm papel central — usados como energia pelas células intestinais, modulam secreção de hormônios (GLP-1, PYY), ativam receptores FFAR/GPR e influenciam metabolismo hepático, sensibilidade à insulina, inflamação sistêmica e integridade da barreira intestinal. Esses mecanismos ajudam a explicar benefícios de fibra sobre glicemia e perfil lipídico.

6. Cutoff thresholds (limiares) de fibra para efeitos microbianos

A revisão compila ensaios com múltiplas dosagens para identificar limiares tipo-específicos (Tabela 2 do artigo). Exemplos:

·         Inulina/ITF: bifidogênese observada a partir de ~7 g/dia (varia por estudo).

·         Gum arabic: efeitos em bifidobactérias a partir de ~10 g/dia em um estudo.

·         Resistant starch (RS4) e outras estruturas complexas: respostas dependem da estrutura; alguns efeitos observados com 20–30 g/dia conforme o tipo. Os autores enfatizam que os limiares variam por tipo de fibra, população (hábitos basais, microbiota inicial), duração do tratamento e medidas de desfecho — portanto, não há um único valor universal.

7. Modulação em pacientes com diabetes tipo 2

Intervenções em pessoas com diabetes mostraram que fibras específicas (inulina, beta-glucana, refeições/ padrões alimentares ricas em fibra) podem aumentar produtores de SCFA, aumentar genes CAZyme e aumentar fecal acetate/butyrate, coincidindo com redução de HbA1c, melhora de GLP-1 pós-prandial e redução de gordura corporal em alguns estudos. Entretanto, mudanças clínicas nem sempre ocorrem paralelas às mudanças microbianas, e alfa-diversity pode permanecer inalterada ou diminuir em alguns pacientes.

8. Limitações, lacunas e recomendações dos autores

·         Heterogeneidade entre estudos (tipos de fibra, doses, duração, populações, técnicas de sequenciamento) dificulta síntese quantitativa.

·         Resposta individual é fortemente influenciada pela microbiota basal, genética, geografia e dieta habitual.

·         É necessário mais RCTs com múltiplas dosagens, designs longitudinais e integração de metabolômica (SCFAs, outras vias) para estabelecer recomendações precisas e intervenções “personalizadas” de fibra.

9. Conclusão prática

A evidência apoia que aumento do consumo de fibras altera a microbiota em direção a um perfil funcionalmente mais benéfico (maior abundância de produtores de SCFA, maior capacidade enzimática para degradar polissacarídeos), com potenciais melhorias metabólicas — mas a natureza do efeito depende fortemente do tipo, quantidade e duração da fibra e do contexto individual. Entender limites tipo-específicos e personalizar intervenções é o próximo passo para aplicar esses achados em saúde pública e clínica.

Referência:

FU, Jiongxing; ZHENG, Yan; GAO, Ying; XU, Wanghong. Dietary fiber intake and gut microbiota in human health. Microorganisms, Basel, v. 10, n. 12, p. 2507, 2022. DOI: https://doi.org/10.3390/microorganisms10122507.

 

 

Prévia do Artigo

O artigo “Dietary Fiber, Gut Microbiota, and Metabolic Regulation — Current Status in Human Randomized Trials” (Nutrients, 2020), de Mari C. W. Myhrstad, Hege Tunsjø, Colin Charnock e Vibeke H. Telle-Hansen, é uma revisão crítica de ensaios clínicos randomizados em humanos que investigam como diferentes fibras dietéticas alteram a microbiota intestinal e, por consequência, a regulação metabólica (marcadores glicêmicos e lipídicos). A revisão sintetiza 16 RCTs publicados entre 2008 e 2019, descreve métodos usados (16S, qPCR, FISH, shotgun metagenomics), resume efeitos taxa-específicos (p.ex. efeito bifidogênico de inulina/GOS; aumento de produtores de butirato com certos amidos resistentes/whole-grain) e discute lacunas metodológicas e necessidades futuras (padronização, integração com metabolômica).

1. Objetivo e contexto

A revisão parte da hipótese de que a fibre gap (consumo de fibras abaixo do recomendado) altera a microbiota intestinal e contribui para doenças metabólicas (obesidade, T2D, DCV). Objetivo: avaliar evidências de RCTs humanas que testaram intervenções com fibras e mediram simultaneamente alterações na microbiota e em marcadores de regulação metabólica (glicose, insulina, HOMA-IR, HbA1c, colesterol, TG etc.).

2. Metodologia da revisão

·         Busca em bases (Ovid MEDLINE) até set/2019.

·         Critérios: RCTs em humanos que reportassem ingestão de fibra e mensuração da microbiota + marcadores metabólicos.

·         Foram selecionados 16 estudos (publicados 2008–2019). Os ensaios foram heterogêneos quanto ao tipo de fibra (inulina/ITF, GOS, β-glucana, arabinoxilanos, amido resistente, whole-grain, etc.), dose e duração, e usaram técnicas distintas para caracterizar a microbiota (16S rRNA NGS, qPCR, FISH, HITChip e apenas 2 estudos com shotgun metagenomics).

3. Principais achados — panorama geral

·         13 de 16 estudos documentaram mudanças na microbiota após a intervenção com fibra.

·         9 desses também relataram mudanças concomitantes em marcadores metabólicos (alguns efeitos clínicos: melhora de sensibilidade insulínica, redução de HbA1c, queda do colesterol total/LDL em certos contextos).

·         Contudo, os efeitos variaram muito entre estudos: população (saudáveis vs sobrepeso/obesos vs T2D/MetS), tipo e dose de fibra, duração e método analítico influenciaram os resultados.

4. Resultados por grupo populacional (resumo dos Tabelas 2–4 do artigo)

4.1 Indivíduos saudáveis (5 estudos)

·         Intervenções com whole-grain e barley kernel aumentaram géneros produtores de SCFA (p.ex. Roseburia, Lachnospira) e aumentaram acetato/butirato fecais em alguns estudos.

·         Barley kernel mostrou redução do iAUC de glicose e insulina pós-prandial, especialmente em indivíduos “responders” com maior razão Prevotella/Bacteroides (Kovatcheva-Datchary et al.).

·         Inulina / fibras fermentáveis exerceram efeito bifidogênico (↑ Bifidobacterium), mas nem sempre houve mudança nos marcadores glicêmicos em sujeitos já metabolicamente saudáveis.

4.2. Indivíduos com sobrepeso/obesidade (6 estudos)

·         Alguns tipos de fibra (AXOS, inulina, inulin-propionate ester) aumentaram Bifidobacterium e produtores de butirato e, em certos ensaios, melhoraram sensibilidade à insulina (ex.: inulin-propionate ester aumentou propionato plasmático e melhorou HOMA-IR/Matsuda ISI).

·         Outros estudos (p.ex. alta ingestão de cereal-fiber) observaram melhora na sensibilidade sem mudanças claras na microbiota, sugerindo mecanismos parcialmente independentes de alterações taxonômicas detectáveis.

4.3. Indivíduos com distúrbios metabólicos (T2D, MetS, NASH) (5 estudos)

·         Em pacientes com T2D ou MetS, dietas ricas em fibra (ex.: combinação de wholegrains + prebióticos) promoveram aumento de cepas produtoras de SCFA e associaram-se a redução de HbA1c, glicemia e alguns lipídios em determinados estudos (Zhao et al., 2018; Velikonja et al.: β-glucana reduziu colesterol e ↑ propionato fecal).

·         Esses resultados sugerem maior “resposta clínica” em populações com disfunção metabólica prévia.

5. Mecanismos propostos

·         Produção de SCFA (acetato, propionato, butirato) pela fermentação de fibras: ativam receptores GPCR (FFAR2/3), modulam secreção de incretinas (GLP-1, PYY), influenciam sensibilidade insulínica, lipogênese e inflamação.

·         Melhora da barreira intestinal e diminuição da translocação microbiana/endotoxemia → redução de inflamação sistêmica.

·         Mudanças funcionais no metagenoma (p.ex. aumento de genes para degradação de β-glucanos ou para produção de SCFA) podem ser tão importantes quanto mudanças taxonômicas. Observações funcionais foram reforçadas nos poucos estudos com shotgun metagenomics.

6. Limitações e lacunas identificadas pelos autores

·         Heterogeneidade metodológica: tipos/doses/durações de fibra, desenho (crossover vs paralelo), tamanho amostral, e métodos para analisar microbiota (16S vs qPCR vs FISH vs metagenômica).

·         Poucos estudos mediram SCFA plasmáticos/fecais de forma padronizada e poucos usaram metagenômica funcional; assim, muitas alterações taxonômicas não foram ligadas de modo robusto a alterações funcionais.

·         Resposta individual: microbiota basal e hábitos alimentares prévios determinam “responders” vs “non-responders”.

·         Duração curta de vários estudos e amostras pequenas limitam detecção de efeitos clínicos consistentes.

7. Conclusões dos autores

·         Evidência promissora: a ingestão de fibra pode modular a microbiota (↑ produtores de SCFA, ↑ Bifidobacterium, alterações na razão Prevotella/Bacteroides em contextos específicos) e em muitos estudos associou-se à melhorias em marcadores metabólicos.

·         Interpretação cautelosa: devido à heterogeneidade e às limitações metodológicas, não é possível afirmar uma relação causal clara e geral entre tipo/dose de fibra → mudança microbiana → melhora metabólica.

·         Recomendações: mais RCTs bem desenhados, com múltiplas doses, maior uso de shotgun metagenomics e metabolômica não-direcionada (para captar SCFA e outros metabólitos) e padronização de protocolos para permitir conclusões mais sólidas e personalizadas.

 

8. O que isso significa na prática (resumo prático)

·         Aumentar consumo de fibras fermentáveis (inulina, GOS, β-glucana, certain RS) e integrais tende a favorecer microrganismos benéficos e produzir metabólitos (SCFA) que podem melhorar regulação glicêmica e lipídica — especialmente em pessoas com risco metabólico.

·         Porém, efeito depende do tipo de fibra, dose, microbiota inicial e duração: não há uma “dose única” universal; intervenções devem considerar o contexto individual.

Referência

MYHRSTAD, M. C. W.; TUNSJO, H.; CHARNOCK, C.; TELLE-HANSEN, V. H. Dietary Fiber, Gut Microbiota, and Metabolic Regulation — Current Status in Human Randomized Trials. Nutrients, v. 12, n. 3, p. 859, 2020.

 

 

Prévia do Artigo

O artigo “The Effect of a Planetary Health Diet on the Human Gut Microbiome: A Descriptive Analysis”, publicado em 2023 na revista Nutrients, foi elaborado por Jacqueline Rehner, Georges P. Schmartz, Tabea Kramer, Verena Keller, Andreas Keller e Sören L. Becker, vinculados à Saarland University (Alemanha).

O estudo analisou de forma longitudinal (12 semanas) o impacto da dieta da saúde planetária (Planetary Health Diet – PH diet), proposta pela Comissão EAT-Lancet, sobre o microbioma intestinal humano. Foram comparados três grupos de adultos saudáveis:

·         Indivíduos que seguiram a dieta planetária (PH),

·         Indivíduos com dieta onívora (OV),

·         Indivíduos com dieta vegetariana/vegana (VV).

Os autores utilizaram metagenômica shotgun (sequenciamento de genoma total), cultura bacteriana e MALDI-TOF-MS para identificar alterações na composição microbiana, diversidade intestinal e espécies de destaque relacionadas ao consumo de fibras.

Introdução

·         A dieta planetária (PH diet) foi desenvolvida em 2019 como um modelo sustentável e saudável para alimentar até 10 bilhões de pessoas em 2050, enfatizando:

1)    Redução do consumo de carne, laticínios e ultraprocessados;

2)    Aumento de frutas, vegetais, cereais integrais e fibras.

·         O microbioma intestinal desempenha papel essencial na imunidade, metabolismo e inflamação, sendo influenciado fortemente pela dieta.

·         O estudo buscou compreender como a PH diet modifica a microbiota em comparação às dietas onívora (OV) e vegetariana/vegana (VV).

Metodologia

·         Participantes: 41 adultos saudáveis, divididos em: 16 OV, 16 PH (mudaram da onívora para a planetária) e 9 VV.

·         Coleta de dados: fezes em quatro pontos (início, 2, 4 e 12 semanas).

·         Técnicas aplicadas:

1)    Extração de DNA fecal e sequenciamento shotgun (~3 Gb por indivíduo);

2)    Culturas bacterianas em diferentes meios;

3)    Identificação de espécies por MALDI-TOF-MS;

4)    Análises bioinformáticas (MetaPhlAn3, sourmash, ALDEx2, ANCOMBC).

·         Ética: Estudo aprovado pelo comitê regional da Alemanha.

Resultados

Diversidade microbiana

·         α-diversidade (Shannon index): permaneceu estável nos três grupos ao longo de 12 semanas.

·         β-diversidade: não houve formação de clusters claros entre grupos, mas os perfis VV mostraram maior similaridade interna.

Composição da microbiota

·         VV apresentou maior abundância relativa de Bifidobacterium spp., Prevotella spp. e Gemmiger spp. em comparação com OV e PH.

·         Na dieta PH, após ≥ 4 semanas, houve aumento relativo (embora não significativo) de:

1)    Bifidobacterium adolescentis (associado à degradação de inulina e produção de SCFA),

2)    Coprococcus eutactus (utiliza β-glucanos).

·         Observou-se tendência da microbiota dos indivíduos PH se aproximar do perfil VV.

Diferenças específicas

·         Dieta PH → aumento discreto de Prevotella copri, Paraprevotella xylaniphila e Bacteroides clarus (espécies associadas à fermentação de fibras e produção de SCFA, mas também relacionadas a potenciais efeitos pró-inflamatórios em excesso).

·         Cultura bacteriana (59 espécies identificadas):

1)    Comuns em todos os grupos: E. coli, Enterococcus faecium, Clostridium perfringens, Bifidobacterium longum;

2)    Exclusivos ou mais frequentes no PH: Streptococcus parasanguinis, Streptococcus salivarius, Enterobacter cloacae, Bacteroides uniformis.

Discussão

·         A PH diet, rica em fibras, levou a tendências de aumento de espécies benéficas, como B. adolescentis e C. eutactus, relacionadas à produção de SCFA anti-inflamatórios.

·         Também foram observadas espécies com efeitos ambíguos (Prevotella copri, P. xylaniphila), que podem contribuir para benefícios metabólicos, mas também associar-se a inflamação.

·         A microbiota apresentou forte variabilidade individual (perfil hospedeiro-específico), reforçando que respostas à dieta não são uniformes.

Limitações

·         Amostra pequena (41 participantes) e análise monocêntrica.

·         Sem plano alimentar padronizado: apenas recomendações e receitas foram fornecidas.

·         Desbalanceamento de gênero (VV com predominância feminina).

·         Não houve acompanhamento funcional detalhado de SCFA plasmáticos/fecais.

Conclusões

·         A PH diet promoveu tendências positivas, aproximando a microbiota intestinal de padrões vistos em vegetarianos/veganos, com maior presença de espécies associadas à fermentação de fibras e produção de SCFA.

·         Apesar disso, mudanças significativas não foram observadas em 12 semanas, provavelmente devido à pequena amostra e ao curto período.

·         Recomenda-se ampliar estudos com populações maiores, multicêntricas, protocolos dietéticos padronizados e integração com metabolômica para confirmar efeitos clínicos e funcionais da dieta planetária.

Referência
REHNER, Jacqueline; SCHMARTZ, Georges P.; KRAMER, Tabea; KELLER, Verena; KELLER, Andreas; BECKER, Sören L. The Effect of a Planetary Health Diet on the Human Gut Microbiome: A Descriptive Analysis. Nutrients, v. 15, n. 8, p. 1924, 2023. DOI: https://doi.org/10.3390/nu15081924.

 

 

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O artigo “Dietary fiber intake, the gut microbiome, and chronic systemic inflammation in a cohort of adult men”, publicado em 2021 na revista Genome Medicine, foi escrito por Wenjie Ma, Long H. Nguyen, Mingyang Song, Dong D. Wang, Eric A. Franzosa, Yin Cao, Amit Joshi, David A. Drew, Raaj Mehta, Kerry L. Ivey, Lisa L. Strate, Edward L. Giovannucci, Jacques Izard, Wendy Garrett, Eric B. Rimm, Curtis Huttenhower e Andrew T. Chan.

Este estudo investigou a relação entre ingestão de fibras alimentares, microbiota intestinal e inflamação sistêmica crônica, medida por proteína C-reativa (CRP), em uma coorte de 307 homens adultos saudáveis. Foram utilizadas técnicas de metagenômica e metatranscriptômica shotgun para caracterizar a microbiota intestinal e analisar como diferentes fontes de fibra (especialmente frutas) influenciam a composição microbiana e a inflamação.

Introdução

·         O consumo elevado de fibras está associado a menor risco de doenças inflamatórias crônicas (cardiovasculares, intestinais, etc.).

·         Um dos mecanismos propostos é a modulação da microbiota intestinal, que pode reduzir a inflamação sistêmica.

·         Contudo, faltam estudos em humanos que relacionem ingestão recente e de longo prazo de diferentes tipos de fibras com alterações microbianas e biomarcadores inflamatórios.

·         O estudo buscou preencher essa lacuna, avaliando a associação entre fibras, microbiota e CRP em homens saudáveis.

Metodologia

·         População: 307 homens de meia-idade, em geral saudáveis.

·         Dados dietéticos: obtidos por questionários validados de frequência alimentar, diferenciando fibras totais e por fonte (frutas, cereais, vegetais).

·         Microbiota intestinal: caracterizada por sequenciamento metagenômico e metatranscriptômico shotgun das fezes.

·         Marcador inflamatório: proteína C-reativa (CRP) plasmática.

·         Análise estatística: modelos lineares mistos multivariados, ajustados para potenciais confundidores (idade, IMC, tabagismo, etc.).

Resultados

1.    Microbioma e inflamação

·         Configurações microbianas associadas a maior inflamação correlacionaram-se com níveis elevados de CRP.

·         Essas assinaturas incluíram alterações na ordem Clostridiales e genes ligados à degradação de polissacarídeos.

2.    Impacto da ingestão de fibras

·         Maior consumo de fibras associou-se a mudanças na composição microbiana e maior capacidade de utilização de carboidratos complexos.

·         O efeito foi mais evidente para fibras de frutas (pectina) em comparação às fibras de cereais ou vegetais.

3.    Efeito da presença de Prevotella copri

·           A resposta anti-inflamatória da fibra variou conforme a colonização intestinal por Prevotella copri:

1)    Indivíduos sem P. copri → ingestão de fibras associada a redução significativa dos níveis de CRP.

2)    Indivíduos com P. copri → níveis de CRP permaneceram estáveis, independentemente da ingestão de fibras.

Discussão

·         O estudo fornece evidência em humanos de que o consumo de fibras, principalmente de frutas, está ligado a perfis microbianos mais benéficos e a redução da inflamação sistêmica.

·         A presença de P. copri parece modular essa resposta, funcionando como um fator de heterogeneidade individual.

·         Isso reforça a necessidade de considerar respostas personalizadas a intervenções dietéticas baseadas na microbiota basal.

Conclusão

·         A ingestão de fibras, especialmente provenientes de frutas, contribui para melhorar a composição microbiana intestinal e reduzir a inflamação crônica em homens adultos.

·         A resposta anti-inflamatória depende do perfil microbiano individual, particularmente da presença de Prevotella copri.

·         Esses achados apoiam o uso de fibras alimentares como ferramenta de prevenção contra doenças inflamatórias crônicas e apontam para estratégias de nutrição personalizada baseada na microbiota intestinal.

Referência
MA, Wenjie et al. Dietary fiber intake, the gut microbiome, and chronic systemic inflammation in a cohort of adult men.
Genome Medicine, v. 13, n. 1, p. 102, 2021. DOI: https://doi.org/10.1186/s13073-021-00921-y.